O Autor

O autor
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu na cidade do Rio de Janeiro, no Morro do Livramento, no dia 21 de junho de 1839.
            Pobre, gago, míope e epiléptico, além de mulato, o que, em um país racis­ta, principalmente à época, era visto como um defeito social, Machado de Assis era filho de um pintor de paredes (Francisco José de Assis) e de uma lavadeira (Maria Leopoldina Machado de Assis). Com a morte da mãe, casou-se seu pai em segun­das núpcias com a doceira Maria Inês da Silva, que se tornou responsável pela criação e educação do enteado.
            Autodidata, Machado de Assis interrompeu, com a morte do pai, os estudos escolares no quarto ano primário para vender, pelas ruas do Rio de Janeiro, os doces que a madrasta fazia.
            Com dezesseis anos de idade ingressou na Tipografia Nacional do Rio de Janeiro como aprendiz de tipógrafo, onde travou amizade com o romancista das Memórias de um sargento de milícias, Manuel Antônio de Almeida (1831-1861). Nessa época, publicou, na Marmota Fluminense, do jornalista Francisco de Paula Brito (1809-1861), o seu primeiro texto literário, o poema Ela. A partir daí, não deixou mais de publicar, explorando quase todos os tipos de textos: romances, novelas, contos, crônicas, poesias, peças de teatro, críticas literárias. Casou-se com Carolina Novais, irmã do poeta portu­guês Faustino Xavier (1820-1869). Podemos dizer que Carolina foi responsável pela ascensão literária do marido, pois opinava, corrigia, modificava todo o seu trabalho literário.
Após a morte da mulher, em 1904, Machado de Assis dedicou-lhe o se­guinte soneto:
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.
Trago-te flores, – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa separados
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos
.
            Em 1896, a pedido dos escritores Medeiros e Albuquerque (1867-1934) e Lúcio Mendonça (1854-1909), encabeçou, com o historiador Joaquim Nabuco (1849-1910), a ideia da fundação da Academia Brasileira de Letras, tornando-se o seu primeiro presidente.
Machado de Assis morreu cercado de fama e glória, a 29 de setembro de 1908, em sua cidade natal.

                                                             Machado de Assis

                         CARACTERÍSTICAS DO ESTILO MACHADIANO
Pessimismo
O pessimismo machadiano é influenciado pelo pensamento do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), em que nada existe de absoluto e nem há uma verdade moral, como podemos perceber no capítulo “Das negativas” que finaliza a obra Memórias póstumas de Brás Cubas:
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
Ironia
Considerado o mestre da ironia, Machado de Assis é um autor difícil de ser vertido para uma outra língua, já que é preciso captar o que está nas entrelinhas, o que está escondido por detrás de seu sorriso de escarninho. Dentre as várias passagens irônicas, talvez a dita por Quincas Borba, no romance homônimo, ao seu enfermeiro Rubião seja a mais conhecida. Filósofo-louco, Quincas prega, em seu Humanitismo, a ideia de que a paz é a destruição e a guerra, a salvação da humanidade, numa paródia (irônica) à teoria (que o próprio Rubião vivenciará na prática) evolucionista do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882):
Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas
Humor
Ohumor machadiano é sutil, velado, calcado na ironia, como podemos perceber nesta fala de Brás Cubas, em suas memórias póstumas, ao definir o seu romance com a prostituta (e, claro, interesseira) Marcela:
... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.
Várias também são as passagens bem-humoradas em Dom Casmurro, como estas, por exemplo:
Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos.
Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo.

Metalinguagem
Assim como a ironia e o humor, a metalinguagem é uma característica que Machado de Assis parece ter recebido de Manuel Antônio de Almeida ao fazer a leitura das Memórias de um sargento de milícias. Lembremos que Machado conheceu Almeida quando aquele era aprendiz de tipógrafo e este, o seu chefe. A metalinguagem nada mais é que uma conversa com o leitor* sobre a própria história que está sendo construída, como podemos verificar neste trecho de Memórias póstumas de Brás Cubas:
Ocorre-me uma reflexão imoral, que é ao mesmo tempo uma correção de estilo. Cuido haver dito, no capítulo 14, que Marcela morria de amores pelo Xavier. Não morria, vivia. Viver não é a mesma coisa que morrer; assim o afirmam todos os joalheiros desse mundo, gente muito vista na gramática.
* Não raro, Machado de Assis trava conversa com a leitora (inclusive em Dom Casmurro), como neste trecho da Cantiga de esponsais, um de seus conhecidos contos:
Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical.
Também em Dom Casmurro a metalinguagem é frequente, dando a impres­são de uma intimidade maior entre o autor, no caso o próprio Bentinho, e o leitor (ou a leitora), como podemos verificar nestas três passagens:
Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz explica tudo, e há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados.
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimi­lhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos; vamos à primeira tarde, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. Amim é que ele me denunciou.
Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já não o obrigou a isso antes; tudo é possível.
Aleitora, que ainda se lembrará das palavras, dado que me tenha lido com atenção, ficará espantada de tamanho esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda as vozes da sua infância e adolescência; haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na cabeça.
Loucura
Se pegarmos os personagens que fazem parte da galeria dos grandes per­sonagens machadianos, perceberemos que todos (exceto o conselheiro Aires*) possuem algum desequilíbrio, alguma grave obsessão, alguns deles beirando as raias da loucura, como Quincas Borba, Rubião e o doutor Simão Bacamarte, psi­quiatra do conto O alienista, do qual retiramos a seguinte fala do protagonista:
– Trata-se de uma coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma expe­riência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra. Aloucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.
* Conselheiro Aires é o narrador de Esaú e Jacó. No ano da morte de Machado de Assis, em 1908, veio a lume Memorial de Aires, um romance de caráter autobiográfico sobre a vida do casal Aguiar e D. Carmo (ou Machado de Assis e Carolina Novais). Único personagem consciente e equilibrado criado pelo autor, o conselheiro Aires possuía, então, as credenciais necessárias para narrar tal história, isto é, credibilidade e bom senso.18 Machado de Assis
Capítulos Curtos
Apesar das descrições, comuns na época realista, a narrativa de Machado de Assis, ao contrário da dos naturalistas (que era lenta), é ágil, consequência da adoção de capítulos curtos (alguns deles curtíssimos), que Oswald de Andrade (1890-1954), em seus romances modernistas, chamou de relâmpagos. De Dom Casmurro, retiramos o capítulo CXIX ou “Não faça isso, querida!”:
A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo.
Adultério

Esse é um dos temas mais comuns em Machado de Assis. Em relação a algumas mulheres, paira a dúvida do adultério, como em Sofia (Quincas Borba), em Conceição (Amissa do galo) e, claro, em Capitu (Dom Casmurro). Desta obra, retiramos um trecho:
Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.

Já outras são, assumidamente, adúlteras, como, por exemplo, Virgília (Memórias póstumas de Brás Cubas) e Rita (Acartomante).
O psicologismo
O importante para Machado de Assis não é propriamente o enredo (este fica relegado a um plano secundaríssimo, como podemos notar nas Memórias póstumas de Brás Cubas e em Dom Casmurro), mas sim o amadurecimento do personagem na presença do leitor, que acaba fazendo o papel de um analista, enquanto o personagem é analisado. Essa linha introspectiva acabou por in­fluenciar inúmeros escritores, principalmente os modernistas Graciliano Ramos (1892-1953) e Clarice Lispector (1920-1977).
Em Dom Casmurro, Bentinho e Capitu são personagens complexos, isto é, possuem uma carga psicológica muito grande, fazendo com que o leitor conheça vagarosamente toda a personalidade deles.
Flashback
Em muitos romances e contos de Machado de Assis, a história começa pelo fim, como, por exemplo, em Memórias póstumas de Brás Cubas, O enfermeiro e Dom Casmurro. Geralmente seus protagonistas, homens solitários (Brás Cubas, Procópio e Bentinho, protagonistas das obras anteriormente citadas), tentam de alguma forma explicar ao leitor, por intermédio de sua memória, o que o levou a tal situação. Abaixo, o início do relato de Bentinho, narrador-personagem de Dom Casmurro:
Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propó­sito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu (...).
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a ado­lescência (...).
Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo.
Universalismo
Machado de Assis é um autor atual, isto é, que não sai de moda, já que tratou de temas inerentes ao ser humano, como, por exemplo, hipocrisia, am­bição, vingança, ódio, traição, loucura, preconceito etc. Muitos desses temas não passam de uma crítica severa aos costumes burgueses. A ociosidade, por exemplo, é uma constante, já que Brás Cubas, Quincas Borba, Rubião, Bentinho e Procópio (personagem do conto do qual retiramos o exemplo a seguir) vivem de heranças deixadas por pais, tios ou parentes distantes:
Assim, por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na conside­ração de que a recusa podia fazer desconfiar alguma coisa. No fim dos três dias, assentei um meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas.
s obrigações do inventário distraíram-me; e, por outro lado, a opinião da vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo para mim a feição tenebro­sa que a princípio achei neles. Entretanto, na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram, então, passados muitos meses, e a ideia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação.
Preocupação formal
Ao contrário dos românticos, que seguiam o conselho do francês Victor Hugo, isto é, nada de regras nem modelos, Machado de Assis se utiliza de uma linguagem mais simples, porém correta gramaticalmente. Raros são os erros cometidos por ele; mesmo assim, não ferem gravemente a norma gramatical.